«O primeiro dia de faculdade é um dia de glória. Esse é o dia em que o jovem universitário julga ser o fim do seu sofrimento. Afinal, foram anos a fio de familiares a perguntar: – E então a média, ah, é boa? Andas a estudar? Olha que o teu primo já entrou! E os pais do réu dizem: – Ele tem capacidade para mais, mas é malandro, não estuda! E dizem isto entre assoar o nariz a um primo e saber da ciática do avô, como que para cumprir um dever social que é “atormentar adolescentes antes que eles ganhem capacidade de resposta”. Mais lá pró fim da refeição ainda vinha o incontornável: – Porque não vais para médico? Tem sempre saída. Por essa altura o adolescente que já tinha comido três vezes mais do que seria aceitável, porque não há forma de escapar ao “anda, come que ‘tás a botar corpo”, faz uma imagem mental de si próprio com uma bata branca, num hospital a cheirar a éter e a fazer uma rectoscopia à tia obesa que o está a servir outra vez e…. quase desmaia. Nessa altura diz o que todos esperam ouvir: – Acho que não dava p’ra isso – e regurgita o mais discretamente possível.  Mas isso está já para trás das costas, afinal, ENTROU! Pois, mas cedo descobrirá que difícil mesmo é sair.                                                        A primeira coisa a aprender é a lidar com os professores universitários, espécie que até à data só tinha visto na televisão. O professor proclama a verdade independentemente do que digam os livros e enciclopédias, e, se disser que os mandamentos são 9 nem o próprio Moisés reencarnado com a pedra original passa à cadeira se disser que são 10. E é bom que não reclame do chumbo e vá à segunda chamada senão a eternidade não lhe chega para acabar o curso!  Passar a uma cadeira pode ser um privilégio concedido apenas a 15 por cento dos alunos. Ou menos, depende. É que muitos professores não viveram a plenitude da sua juventude e à falta de poder comparar tamanhos no ginásio, comparam percentagem de chumbos: é mais viril aquele que tiver maior percentagem de reprovados. Também importante neste momento é conseguir desligar alguns dos sentidos, porque diz-se que há catedráticos que não saem das instalações da faculdade desde a puberdade e os modelitos de 1971 podem ferir os olhos e traumatizar. E também é melhor desligar o olfacto, porque há alguns a investigar complicadas teorias sobre os malefícios da água usada diariamente na pele e servem eles próprios de cobaia por amor à ciência. Mas eles adoram a profissão, seria a melhor até, se não fosse aquele incómodo que são os ALUNOS.  Depois há as sebentas. No primeiro dia o caloiro pensa: – Ei! Isso eu sei o que é! São aqueles caderninhos pequenos de capa amarela que nos davam na escola primária! E está toda a gente a comprar, vou também. Assim que chega à reprografia, que é o sítio dentro da faculdade que anula as possibilidades de qualquer pai trocar de carro nos próximos anos, descobre que afinal as sebentas são caríssimas e já estão escritas. Pelos professores precisamente. Bem, nem tudo está perdido, pensa o aluno, pelo menos não vai gastar em papel e caneta já que está tudo compilado. Assim que abre a sebenta pensa que é uma praxe: as folhas foram fotocopiadas já quatro vezes por cada ano da sua vida, só são legíveis duas linhas em cada página e nem sequer são seguidas, todas as citações são de 1971, exactamente o ano em que o professor foi visto em público pela última vez. Por esta altura o entusiasmo começa a refrear.  Resolve então que o melhor é ir almoçar. E é lá, na cantina da faculdade, que ele, apesar de não ter “ido p’ra médico” descobre pela primeira vez o colesterol. Sim, porque a única coisa que não é frita nas refeições da cantina são as laranjas e os iogurtes. Mas a experiência na cantina é mais vasta. Cedo ele vai descobrir que ou chega no lote dos vinte primeiros ou a refeição vai ser pior do que os almoços de domingo antes de saírem as colocações. A partir do vigésimo primeiro utente o prato do dia acabou, ele vai na verdade acabar o curso sem perceber porque não lhe chamam o “prato da hora” ou a “comida dos primeiros quarenta e cinco minutos”. A partir daí não há nada que enganar! Salsichas e batatas, que para grande surpresa de todos foram, nada mais, nada menos que: fritas! Há sempre um prato alternativo pelo dobro do preço, que surpreendentemente parece bastante a comida do dia anterior, passada por um triturador e com salsa picada por cima. Mas salsa fresca! A água, essa pelo menos é oferecida, e assim que bebe o primeiro gole o caloiro tem uma memória vívida da sua infância: aquela Páscoa em que no meio das limpezas, a mãe se distraiu por uns momentos e ele bebeu lixívia! Mas isso foi há muito tempo, agora há lixívias perfumadas que certamente sabem melhor do que a água da cantina.  Passado esse momento e enquanto o seu jovem organismo lutava para combater o choque anafiláctico, o caloiro vive mais uma experiência, a secretaria. Assim que chega a sua vez ele começa com muita cordialidade, e apesar da azia que se começa a instalar, a fazer a sua pergunta. No final há um momento de pânico: a funcionária está imóvel, silenciosa e com o olhar no infinito e ele pensa: – Queres ver que a sujeita morreu? Isto só a mim! E eu que já não fui para medicina p’ra evitar estas cenas! Só a mim!Eis que à pergunta: – Qual é prazo máximo para a inscrição nos exames? – a senhora sai do coma e responde: – O queijo é feito com mais puro leite da vaca e partido em fatias finas. O aluno está tão feliz por confirmar que a senhora está viva que, corda nas sapatilhas, pula dali para fora. Nem parou para pensar que saiu sem saber a resposta à pergunta nem tão pouco reparou na semelhança da resposta com uma publicidade da televisão. Só ao final de um ou dois anos, já com o colesterol e trigliceridos altíssimos e o fígado a dar sinal de fraqueza pela presença nas queimas das fitas, é que o aluno suspira pelos bons velhos tempos de liceu, em que comia muito, é certo, mas nem sempre eram fritos e a imagem de rectoscopia à tia obesa agora lhe parecia um passeio no parque comparado com uma época de exames.  Eu acho que um aluno entra na faculdade como um soldado que vai para a guerra sem fazer a recruta. Faz falta um pré-nivel universitário, um curso sobre “tirar um curso”. Que para além da formação em sala para aprender a ler sebentas com lupas e dicionários de português arcaico, também devia incluir visitas de estudo para pelo menos se conhecer o inimigo. Não é na televisão que se aprende sobre professores universitários, uma senhora fez uma vez um documentário sobre a vida dos gorilas, mas ninguém vai fazer sobre os professores, é demasiado desagradável se calhar.» 

Sónia Santos, Portugal em Capítulos, Papiro Editora – nas livrarias em Novembro.